30 de março de 2010

Praça

Tavik Simon ”Mulher numa esplanada de Paris” 1905

Pede-se mais uma bica.

O sol continuar a mergulhar na pele e de forma gutural na carne e o barulho da loiça, adormecida e espremida uma na outra, estorva o lugar da audição de outros barulhos nefastos da rua.

Pombos recortam o ar, presos em cada sobressalto do voo e mergulham na plenitude do vazio, brilhando a asa no brilhante da luz.

Os olhos fecham-se, cansados. O corpo vai ficando, em parceria com a troca contínua da clientela à volta.

Mais uma bica... e um bolo de arroz, sff

Bolo depenicado, comido entre goles açucarados de café de gosto doce.

Limpa-se a boca, pousa-se o guardanapo. Não há barulho. Continua o sol lá ao alto.

Meias de leite subvertidas flutuam à volta da mesa, vertendo o líquido que se deita no pires.

O ronco borbulhante dos autocarros esventram a calçada recortada pelo ruído. Pessoas entram, pessoas saem. Continua o sol lá ao alto.

Alguém pede a conta.
Continuo com o sol reflectido no corpo, sem vontade de o fechar, apenas abro de vez os olhos. Vejo então barulho.

25 de março de 2010


Hoje recebi uma caixa de papel ilustrada e cheia de tudo.



Parcelas de mim foram devolvidas em objectos, fotografias e cartas. Outra parte foi devolvida ao passado.



O cheiro de cada um daqueles objectos, atirados e quase esventrados dentro do caixote semi-encerrado já não deixa espaço ao tempo, deixa apenas apagá-lo e perturbar por pequenos momentos, fracções de memórias trazidas ao concreto, às cores do presente.



Estes pedaços de quase nada ficam então guardados. Um dia servirão para forrar a história do passado.



Descobri hoje que o fim não tem fim, é apenas a continuação em sentidos antagónicos.

18 de março de 2010

Temos passagens velozes em paragens obrigatórias, onde as luzes não apagam a estrada, mas também não iluminam o caminho, tornam-no fantasma numa penumbra doida de ruídos.
Passam carros, passam pessoas dentro dos carros, e a cancela baixa-se numa destreza de interrupção voluntária atroz e autoritária, ditando os sorrisos imediatos daquele não-lugar.
A janela da separação, fria, embaciada, abre-se sem direito a cumprimento. Não hoje. Hoje a vontade ficou encostada lá dentro, no quente da portagem iluminada pelas vozes da televisão do contentamento entre horas.
Passam os carros, passam as pessoas dentro dos carros, fogem em direcção à viagem e a imobilidade da transacção, do gelo que atinge a mão fora de portas, corta o afago da comunicação. Só hoje. Amanhã haverá nova passagem. Nova cancela a permitir passagem. Uma nova viagem pela frente.

15 de março de 2010

De que cor é a praia?



José Filipe

- Oh Mãe... de que cor é a praia? Cheira a amarelo, um amarelo que torra a pele de luz, mas vejo-a mais azul... é azul. É azul mãe?

- É da cor dos gritos das crianças a rirem. Tem os tons do creme da maresia dos bolos de côco de jornais derretidos ao sol da areia molhada... tem a cor de tudo.
Vá, senta-te aqui para secares e não encheres o fato de banho de areia.

- Só mais um mergulho, mais um bocadinho e já venho.

11 de março de 2010

Ando em zaragatas comigo mesma neste alheamento de ruas à minha volta.
Salto poças, tropeço em pedras, mergulho num chão áspero de calçada pontiaguda, que me rasga a roupa e me faz sangrar os joelhos.
Tenho as mãos esfaceladas, aleijadas, torcidas de tanto não querer cair. Mas caio! Ajoelho-me perante as artérias ruidosas da cidade ao meu redor. Do mundo. Da vida que me anestesia e me saúda com tropeços e majestades de menina mimada.
Quero tanto tudo mais, mas continuo a ver as cicatrizes abertas nas estradas por onde passeio o meu corpo. Quero tanto parar, encostar-me ao banco do jardim e ficar. Quero dormir, sentir o sol a bater na cara e as pernas caídas com os pés escarrapachados na relva verde e húmida que o descanso permite.
Vou fechar os olhos. Vou ficar aqui parada a ver se adormeço o cansaço.

5 de março de 2010

Descobertas


No outro dia descobri detalhes esquecidos num livro que dormia na estante. Estava a folheá-lo e a memória perfumou as palavras que o texto queria gritar.
Fechei o livro... deixei a memória quieta. Daqui a uns anos volto para a despertar.

1 de março de 2010

Sapatos Vermelhos

Nicola Slaterry - Red Shoes
Ganha-se uns sapatos vermelhos, que enfeitam os pés e cada andar parece que ganha um contraste real com tudo o que é galgado.
As pedras no chão, calcadas, tornam-se lisas, polidas e perfeitas ao andar guarnecido do caminho.
São enfeites saboreados cada vez que são desfilados na montra dos olhares invejosos e aprovadores de quem com eles se cruzam, saltam à vista e apaixonam paixões providas de um conforto só possível ao serem calçados por cada um dos sapatos vermelhos.
À noite, quando a lua sobe, quando o vento galga as friestas das portas e a brisa saboreia o quente do quarto, os sapatos são descalços, emparelhados, qual par romântico junto à ombreira da porta e tornam-se vigilantes, amantes de olhares carnudos de veludo encarnado.